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MEMÓRIAS DO CORPO

Artimanhas do poder.

  • Sep 16 2025
  • Anne Rodrigues
    is a historian, artistic director, performer, and curator from Salvador, Brazil. Her work connects music, politics, and Afro-diasporic practices, drawing on her experiences with groups such as Ilê Aiyê, Filhos de Gandhy, and Laboratório Rumpilezzinho. In her essay for the South-to-South project at the Humboldt Forum, she reflects on the Black Atlantic body as an archive of memory and resistance, capable of preserving intangible knowledge and power struggles through embodied strategies of survival and creation.

A diáspora é como as águas: fluida e móvel. O movimento é o âmago dos corpos em diáspora, que, pelo devir histórico, se agitaram na sedição onírica de cruzar subjetivamente as margens do oceano Atlântico. Experimentamos compreender a diáspora como um fluxo social que dispõe de mecanismos culturais e políticos em que o corpo guarda a memória, não como raízes de um território, mas como afluentes transculturais capazes de repactuar os sentidos além das fronteiras nacionais. A migração forçada impõe outros sentidos ao permitir que a desterritorialização seja vista, também, como possibilidade de criação artística e política, ainda que completamente atravessada pela necropolítica.

A natureza dinâmica da diáspora do Atlântico foi experienciada tanto pelos corpos que resistiam quanto por quem colonizou. A colonização impôs de forma violenta a propagação de novos territórios, categorias de pessoas e, principalmente, da produção de imaginários culturais diferentes. A noção imaculada de dominação colonial é desmontada quando constatamos que a ocupação do espaço foi realizada não como Estado-nação, mas sim como ecossistema interativo, que dependia de dinâmicas intercambiantes a cada fase de desenvolvimento do imperialismo.

Ao produzir subjetividade negra, nossos corpos transmutam a qualificação como objeto/mercadoria imposta pelo capitalismo, e abrimos fissuras incapturáveis pelo sistema colonial. A violência não encerra o abismo dessa experiência, na medida em que tais corpos se tornam protagonistas de suas histórias a partir da imaginação como possibilidade de criação da sua própria vida/existência. Foi a capacidade de imaginar a liberdade que moveu os corpos negros no espaço-tempo.

Na diáspora, o corpo é o próprio território e feracidade do impossível. Este corpo-memória-território deve ser analisado acolhendo a contradição e o poder diante da correlação de forças interativas presentes na diáspora. Este poder é incapaz de ser definido, capturado ou representado, pois se apresenta na vida coletiva ao gerar as bases culturais do Atlântico Sul.

Defendo gestos de coragem como toda fissura estética e subjetiva incapturável.

Um dos gestos de coragem mais significativos no entendimento de corpo-memória-território é a capoeira. A capoeira é a própria elaboração criativa do corpo diaspórico explorando suas potencialidades e sentidos: música, história, movimentos, rituais, hierarquias e, especialmente antissistêmico para mim, um novo nome. [1] Um novo nome é ao mesmo tempo uma forma cambiante de se proteger, pois este nome só seria reconhecido entre seus pares capoeiristas, e também uma enunciação autônoma da sua existência. A possibilidade de redefinir-se, enunciar-se enquanto corpo-memória-território, talvez seja o horizonte mais próximo do devaneio pela emancipação.

 

Fig. 1

A dúvida se a capoeira é dança ou luta é a fissura incapturável.

Uma vida urgente é toda aquela que tem um alvo apontado para seu corpo. Se não é possível estabelecer uma origem para capoeira a partir dos referenciais da historiografia colonizada, é porque essa história só pode ser contada a partir dos fundamentos que a constituem: o corpo e sua escrevivência. É preciso interromper as formulações do que é documento histórico a fim de que outras narrativas saiam dos silêncios históricos que a violência reduziu o corpo diaspórico. Uma vida urgente só pode se preservar na ação do agora.

O único tempo possível para os corpos negros é o presente.

a vida é agora

a saúde é agora

o planeta é agora

ancestralidade é agora

amor é agora.

Convoco a entender a ancestralidade não como origem, ideal ou passado, mas como poder de atualização diante do devir histórico. O passado é um acúmulo de presentes. Essa capacidade de preservar os gestos nos presentes é a que chamo de ancestralidade. A esse corpo-memória-território, denomino como fronteiras ancestrais. Ancestrais, porque sua ação é anterior à própria existência e porque os corpos se reconhecem nos gestos de memórias adormecidas ou co-criadas. O corpo dispersado pela diáspora tece memórias a partir de uma associação empática capaz e necessária para sobreviver à dominação colonial. O corpo co-cria espaços de memórias a partir de gestos como a música, a capoeira, a dança e o candomblé.

A grandiosidade das populações negras é criar na adversidade.

A dramaturgia da recordação que separa a genealogia da geografia no ato de lidar com o pertencer na diáspora possibilitou ao Atlântico Sul uma transcultura negra, no qual a unidade de pertencimento se dá pelo muito mais por uma dinâmica-sentimento coletivo de pertencer, partilhar e sobretudo se reconhecer como corpo-subjetivo e não se perder na qualificação de objeto definida pelo colonialismo, do que necessariamente uma busca por uma origem. No Brasil seu contínuo contato com a África, possibilitou a fabulação de pertencimentos que não estão presos às limites geográficos, mas sim a uma vontade coletiva do corpo-memória-território estabelecer suas fronteiras ancestrais.

Criar arte para produzir vida.

Quando observamos os gêneros musicais qualificados como nacionais ou identitários do continente Atlântico, constatamos como o elemento negro formatou a música desses países. Percorrendo a cultura dessas nações, percebemos que o ritmo forjado pelo corpo negro é o fundamento musical de tais gestos. O samba no Brasil, o reggae na Jamaica, a salsa em Cuba, o Jazz nos Estados Unidos ou o tango Argentino não existiriam sem a tecnologia social dos ritmos elaborada por estes corpos-memórias-territórios.

O domínio do ritmo é o corpo.

A memória do ritmo é o corpo.

A estética do ritmo é o corpo.

 

Fig. 2

A diáspora musical foi responsável por estabelecer contradições nas conjunturas sociais de diferentes épocas. Imagine que no auge das Leis de Jim Crow, negros estadunidenses se tornariam professores universitários através do jazz nos cursos de música. Ou que, nos anos mais autoritários da Ditadura Militar brasileira, a partir do carnaval de 1974, os Blocos Afros em Salvador de Bahia ocupariam as ruas reivindicando sua existência e a libertação das nações africanas. Nada disso foi capaz de barrar o projeto genocida contra os corpos negros, mas esses fatos, fabulados a partir do protagonismo do ritmo, permitiram que esses corpos-memórias-territórios se autorreferenciassem a partir de sua ação artística.

A cidade mais negra fora da África, Salvador, Bahia, Brasil, é também um importante experimento de negritude, onde o ritmo salvaguardou as tecnologias ancestrais na música e na história. À complexa cambiante cognição coletiva tecida pelas memórias musicais abrigadas no corpo das populações transatlânticas chamarei de DNA rítmico. Em Salvador de Bahia, outros gestos criados no corpo como a capoeira, o candomblé, a dança afro e o pagode também são mecanismos políticos voláteis incapturáveis do ritmo. Essa capacidade cognitiva de enunciar-se enquanto coletivo a partir dos ritmos é uma verdadeira artimanha do poder intangível aos sistemas de controle e que, para mim, norteiam a musicalidade-negritude dessa cidade.

Como produzir uma historiografia sobre essa cidade sem absorver o corpo como documento e sujeito histórico?

Ao pesquisar as formas de transmissão deste DNA rítmico em Salvador de Bahia experimentei o espaço doméstico, o terreiro de candomblé e as ruas como locais onde tais tecnologias do corpo desafiam a trama do tempo. As levadas de rua [2] transmitidas através da oralidade, produzem fissuras na ordem social do racismo ao protagonizarem narrativas criadas a partir do DNA rítmico com o samba reggae, groove arrastado, samba duro, tamanquinha e todo universo percussivo baiano.

 

Fig. 3

 Durante as aulas da disciplina História da Música na Diáspora Negra [3], realizo o exercício prático, no qual, por meio da anamnese, recordamos situações de aprendizado musical. Esse lugar comum que compartilhamos da iniciação musical feita por pessoas próximas ilustra bem essa relação do DNA rítmico como gestos de uma comunicação com o corpo. A oralidade é o corpo. A precariedade dos sistemas de ensino brasileiro torna praticamente inacessível a iniciação musical em instituições formais de ensino. A nossa música é criada e transmitida sem a gerência do Estado e através da historiografia do tambor. Nos últimos dez anos, constatei nessas turmas que o despertar musical acontecia na maioria das vezes através de amigos, parentes ou dentro das igrejas Evangélicas e Terreiros de Candomblé. A pesquisa apontou como o projeto neopentecostal no Brasil possibilitou que milhares de pessoas negras periféricas tivessem acesso a instrumentos musicais; sobretudo os de harmonia, que são de modo geral caros. A comunidade gospel brasileira viabilizou a educação musical dentro de bairros de Salvador nos quais anteriormente não havia nenhuma escola de música.

Todavia, na percussão, a antropologia é diferente. É muito comum na Bahia famílias de percussionistas transmitirem técnicas íntimas daquela linhagem sanguínea por gerações, como é o caso do Terreiro do Bogum, de Mônica Millet no terreiro do Gantois ou da família Oliveira, com a sua banda de baile no recôncavo baiano. Me recordo que no auge da Timbalada, nos anos 1990, a cidade de Salvador referenciava a Tamanquinha como toque do Candeal. [4] O DNA rítmico é herança acumulada por gerações. Essas famílias geradas pelo ritmo podem ser sanguíneas, espirituais ou até mesmo apadrinhadas.

 

Fig. 4

 A obra musical do Aguidavi do Jêje é anterior a sua produção fonográfica. O DNA rítmico desses corpo-memórias-territórios é transmutado por séculos de existência do Zoogodô Bogum Malê Rundó. A música do Aguidavi do Jêje é mergulhada numa profunda fabulação que se realiza ao atualizar a ancestralidade do Jêje Mahin. A música é um gesto familiar, religioso e educativo. Essa transcultura negra, vivida por séculos pelas pessoas do Bogum, é uma manifestação das fronteiras ancestrais que permitiram salvaguardar vidas do período escravista até os dias atuais. Uma sensível a ambivalência das relações jaz também na instrumentação musical. Nenhum instrumento musical foi trazido dentro dos navios negreiros. Toda percussão é fabulação. Todo tambor criado nas águas diaspóricas é resultante da contingente comunicação dos corpos dispersados por empatia do pertencimento e produção da vida. Os modos de fazer o instrumento e suas sonoridades é a escrevivência de uma historiografia do impossível baseada na ancestralidade. A maneira pela qual o Aguidavi do Jêje toca o violão, que, apesar de não ser um instrumento percussivo, soa/age como tal em suas canções, é tão genuína que, quando escutamos, conseguimos nos autorreferenciar:

"Uma macumba, macumbegê!

Ouvir um som de viola

Um som que soava berimbau

Ouvir um som de viola

Um som que soava berimbau

Ouvir um som de viola

Um som que soava berimbau

Ouvir um som de viola

Um som que soava berimbau"

(Violão de cabaça, Aguidavi do Jêje)

A origem dos toques dentro do espaço religioso tem relevância muito mais bem definida do que nas Levadas de rua, e a grande artimanha do poder desses corpos-memórias-territórios é que eles estão completamente aptos para reconhecer essas nuances do DNA rítmico. Ao mergulhar no universo dos ritmos afro-brasileiros, deparamo-nos com o Ijexá [5] e sua generosidade de encaixar-se em diferentes gêneros e arquétipos musicais. Quando pesquisamos o uso do Ijexá na música brasileira de modo geral, percebemos como esse toque performa bem a noção de ancestralidade a partir da diáspora musical. Com o Ijexá, diferentes nações, deidades, músicas e pessoas conseguem reconhecer-se na cosmogênese do ritmo no corpo. Uma das performances que mais me cativa nessa ambivalência das relações diaspóricas é o Baiana System e seu fazer artístico enquanto discurso transatlântico. A maneira como a clave do Ijexá está na música Lucro (Descomprimindo) presentifica a ancestralidade e a potência criativa da diáspora do Atlântico Sul. Uma escuta atenta dessa música pode mover pela imaginação o Ijexá através das sonoridades que abrigamos no corpo como DNA rítmico. Nutrir gestos de coragem através do fazer musical como formas de nos enunciar também perpassa as maneiras pelas quais resistimos ao projeto necropolítico e à nulidade da vida negra. Ao usar o Jêje como nome artístico, aquelas pessoas estão emancipando suas narrativas. As culturas do Atlântico Sul Negro também se desenvolveram como mecanismos políticos voláteis capazes de criar e operar veículos de consolação através da mediação estética. Cada grupo de pagode baiano em uma periferia é uma possibilidade de futuro cultivada no presente como artimanha do poder. O corpo violado pelo racismo é o mesmo que guarda os fundamentos dessa música diaspórica. Como disse Larissa Luz, "O corpo que dança é o mesmo corpo que pensa." A subjetividade incapturável dança como as marés no devir da vida, e o corpo é o documento histórico desta narrativa.

This contribution belongs to “Unión Textiles Semillas.” Created within the framework of 99 Questions, Stiftung Humboldt Forum im Berliner Schloss.



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  • Footnotes

    [1] A capoeira é uma atividade esportiva que tem hierarquias divididas por graduações (títulos). As graduações são obtidas ao longo dos anos em uma cerimônia denominada batismo, no qual a pessoa graduada recebe uma corda da cor representada pelo título que vai receber e um novo nome de identificação entre os capoeiristas.

    [2] Levadas de ruas são os chamados os toques percussivos criados pela transmissão oral no espaço público e que são presentes na música baiana.

    [3] Disciplina criada por mim em 2013 e ministrada nas turmas do Rumpilezzinho e Centro de Formação em Artes da Funceb.

    [4] O Candeal é um bairro de Salvador onde surgiu o grupo percussivo Timbalada, criado pelo maestro Carlinhos Brown e que até hoje preserva uma técnica muito específica de tocar o Timbal.

    [5] O Ijexá pode identificar um ritmo, um toque, uma nação ou dança.


    Image credits

    Cover: biarritzzz, El Sueño del Telar que durmió por la tarde, 2024. Digital rendering of the work, inspired by the weaving practices of Unión Textiles Semillas. Created within the framework of 99 Questions, Stiftung Humboldt Forum im Berliner Schloss.

    Fig. 1, 2: Scenes from an event as part of South-to-South: A Meeting on African and Afro-diasporic Technologies in Salvador de Bahia, a research node of 99 Questions at the Humboldt Forum, Berlin, in collaboration with Pivô Salvador. © Ricardo Prado.

    Fig. 3: Aula do Laboratório Musical Rumpilezzinho com a autora Anne Rodrigues durante a disciplina "História da Música na Diáspora Negra do Atlântico", 2016. © Anne Rodrigues.

    Fig. 4: Capa do primeiro disco do Aguidavi do Jêje , composto por membros do Terreiro Zoogodô Bogum Malê Rundó criado pelo mestre Luizinho do Jêje, 2023. Photo © Diego Bresani.

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